SOBRE GOVERNAÇÃO E INTERESSE GERAL

SOBRE GOVERNAÇÃO E INTERESSE GERAL

GOVERNAÇÃO E INTERESSE GERAL.

Apresentação do Livro EUROPA EM CRISE. Porto, 15 Outubro de 2012 (Discurso preparado para o Centro Universitário do Porto e substituído por um improviso mais sintético, no final das expsoições dos doutores Artur Santos Silva, Presidente da Gulbenkian e do BPI e Manuel Carvalho, Director-Adjunto do jornal Público)

Nos meus livros “Portugal em Crise” referi o défice de qualidade e representatividade dos titulares do Poder e exprimi a ideia de que o país se atrasou no aperfeiçoamento do sistema política propiciado pela experiência da Revisão pós-1982. E, em “Europa em Crise”, conclui que os governos, face à realidade da enorme e incontrolada dívida externa, se atrasaram demasiado no pedido se apoio financeiro às instituições supranacionais de que fazemos parte, tal como há muito se deveria ter desencadeado processos negociais, visando tempos e, quiçá, juros, se não mesmo montantes. Pensando menos em destrutivos excessos de austeridade, de soluções orçamentais, em tempo tao curto. Cujos efeitos, nada resolvendo, só irão acentuar a posição mais degradada com que, a final, acabaremos (se não queremos continuar a deixar espoliar uns e a passar fome outros), por económica e financeiramente ainda mais destroçados, nos apresentar à renegociação.

Hoje estamos muito longe do que o governo esperava e afirmava que seria a situação a que nos conduziria a sua política económica e fiscalmente recessiva e orçamentalmente muito mais desequilibrada do que o alvejado.

Pensar mais no crescimento económico, no plano das medidas internas e de recomposição do jogo entre parceiros europeus. Ou seja, designadamente com vista à consolidação fiscal e orçamental, nem acelerada com excessiva austeridade expropriadora dos cidadãos nem manobrada artificialmente integrando verbas que não traduzem cortes na despesa mas transferências artificiais. Antes, equilibradamente adequada, em termos de tempo e de medida das coisas. Pois as receitas que não resultam de subsídios só podem resultar da economia. E forçando a União Europeia no sentido, não apenas da união bancária e recapitalizações bancárias, como de reforma do BCE como Reserva Federal Europeia e uma real federalização dos Estados segundo uma lógica perequativa do seu desenvolvimento e bem-estar das suas populações em geral.

Como referi no “Portugal em Crise”, muitos dos nossos problemas devem-se ao défice do modelo concreto de democracia em que vivemos, no plano nacional e da União Europeia.

Mas quem tenha assistido às tomadas de posição dos governos nos últimos anos, não pode deixar de recolocar à reflexão velhos temas, intrinsecamente ligados à construção das democracias modernas, como o da definição do interesse geral, porque pressuposto natural da legitimidade funcional das governações políticas.

Não é por acaso que ele aparece invocado quase só precisamente quando a sua efectivação parece mais questionável, as soluções menos acertadas ou mais discutíveis; …que ele é enfatizado no momento e face a decisões afirmadas pelo governo como únicas correctas porque únicas possíveis.

A actualidade é bem reveladora desta realidade, embora, face a decisões tao proclamadas hoje, logo estrondosamente caídas ou alteradas amanha, se comprove que afinal elas não eram as únicas possíveis nem eram inadiáveis, E se, como se tem visto, não o eram, logicamente também não tinham o dom de brindar a sociedade senão com a invocação abusiva da invocação do interesse geral. É-o os x% do défice orçamental para este ano? Afinal, o governo nem precisou de renegociar; contra factos não há argumentos: a “tróica” aceitou que não fosse essa mas sim a realidade. Está renegociado! É-o a renegociação da dívida ou não? Este é um tema bem exemplificativo: não haverá, diz o Poder instalado; mas às escondidas renegociou já a flexibilização do pagamento do maior débito, a vencer em Setembro de 2013. Afirma-se algo como interesse público mas faz-se outra. Onde está afinal o interesse geral?

A questão da governação, porque em democracia, e do interesse geral perpassa em muitas críticas que faço e permite a constatação da deriva autocrática no ambiente político das governações do presente.

A formulação da noção de interesse público, geral, aparece com o Estado Moderno, assente em sociedade fundada numa ligação contratual, implícita, tácita, entre os seus membros, que mais recentemente se viria realmente e consubstanciar na ideia contemporânea de Constituição normativa.

A Declaração de Direitos de 1789, no seu artigo 2.º, afirma que “o fim de toda a sociedade política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis”, que são “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

Para chegar ao interesse geral, a partir dos interesses dos indivíduos, a Revolução Francesa inventou o mandato representativo, em substituição do mandato imperativo ligado às categorias com assento nas Cortes Estamentais.

Com efeito, se a soberania passa a residir no povo, o poder deve ser confiado a representantes livremente escolhidos, a quem cabe decidir sobre o que é ou não do interesse de todos, geral, determinado pela Razão, que os deveria guiar, uma vez que o conhecimento e a confiança, base da escolha, o garantiria.

As construções sobre o mandato imperativo e a soberania da lei estão ligadas à afirmação do interesse geral, definido pelo Estado, o único que teria a virtualidade de garantir a imparcialidade e independência, embora a visão liberal anti-intervencionista pública, sempre tenha tendido a defender que o interesse geral resultaria naturalmente da procura por cada um do seu interesse, pois utilidade dos indivíduos conduziria à utilidade geral, o que é muito contrariado pela história. E dramaticamente por mais do que uma vez.

Mas se o interesse geral é exterior ao Poder, também não resiste à leitura liberal, que permite todo o tipo de pressões e dependências, abusos e assimetrias…

São muitas as críticas permitidas ao recurso ao conceito de interesse geral, porque hoje capturado pelo grupo dominante no poder ou sempre invocável para ajudar a legitimar o seu poder e decisões, por mais erradas que sejam. Sobretudo com as distorções de representatividade face à evolução para a sociedades partidocráticas, em que o que conta é a luta pelo poder e a sua manutenção, mero jogo entre grupos que se disputam não a razão para o exercício do Poder, mas os lugares do Poder a qualquer preço, não querendo representar mas representar-se, construindo falsamente o interesse geral porque apenas instrumento integrador de meros interesses parcelares.

De qualquer modo, porque principio fundante, justificativo e também limitativo do poder, sendo a ideia de interesse geral que pode legitimar o seu exercício, sob pena de os atos serem ilegais e o poder ilegítimo, há que reabilitar este conceito e a sua correta aplicação.

Uma coisa, desde logo, é certa: o governo e portanto o Estado do momento não tem o monopólio da conceção do interesse geral.

A tentativa totalitarista de o monopolizar, também possível em democracia, cria o vazio à volta do Poder, afasta o debate, torna impossível a colaboração eficaz, enfraquece a sociedade.

O governo que se apresente como detentor do absoluto, que julga tudo poder fazer, sacrificar, é megalómano.

O interesse geral nunca é incontestável e definido uma vez por todas. Antes, apela à discussão e ao questionamento permanente por aqueles em nome de quem e para o bem de quem é suposto ser exercido.

A regeneração, a moralização do Estado é necessária. A conquista da eficácia é uma obrigação. A modernização é imprescindível. Mas esta não pode fazer-se de repente e contra tudo e todos, embora tudo isto seja necessário se queremos que se mantenha um modelo de Estado social e que não se ponha em causa o essencial das funções tradicionais do Estado. Mas que não se destrua, antes se reforce o cumprimento de todas as novas missões com satisfação geral, assente em princípios de grande justiça, igualdade e racionalidade.

Muitas das dificuldades vividas pelo Estado nas suas missões não são puramente técnicas ou financeiras, a resolver pela tecnocracia ou mera contabilidade, mas encontram o seu fundamento também na problemática da legitimidade perdida no período pós-eleitoral, questões de rigidez, disfunções, austeridades suicidas, medos de acção burocráticos, flagrante incumprimento de promessas eleitorais. Tudo alimentando uma crise de confiança e de legitimidade, causando separações entre governo e sociedade, esta em mudança profunda, que os timoneiros do Estado não percebem nem acompanham.

O poder político não é o único poder social. Deve abrir-se à rediscussão dos conteúdos do interesse geral, sempre que, por seus excessos ou inadequações, outros poderes ou contra-poderes sociais o confrontem ou afrontem.

Estar aberto á sociedade em permanência. Não apenas abrir-se quando não lhe resta outra alternativa, pressionado, deixando chegar ao ponto de serem outros a definir, em vez do Estado, os interesses que ao Estado cabe executar.

Ao governo cabe afirmar não a verdade absoluta de detenção da ideia de interesse geral, mas o primado da política, o que exige a definição última das coisas pelo próprio poder político.

Os governos têm de despir-se da tendência para absorver a sociedade, de se julgarem senhores do bom direito e do exclusivo do entendimento sobre o interesse geral, reconhecendo a legitimidade de quem se lhe opõe e de outras visões e abandonar as suas, designadamente quando não estão correctas, desde logo porque estão a resultar ao contrário do pretendido.

Governar é dirigir a sociedade, não sufocar, eliminar, anular, a sociedade.

Deve recordar-se aos governos não só o que significa a lógica da representação, como aliás que eles não são tudo, que eles não estão legitimados para invertidamente provocar em nome do Estado todos e quaisquer sacrifícios aos cidadãos e à sociedade.

Hoje, o estado assume muito deficientemente as funções fundamentais, tradicionais, de soberania, manutenção da ordem e justiça, com aumento do sentimento de insegurança; e aí temos as milícias privadas, o crescimento das polícias municipais, a contestação pelos justiciáveis e desautorização dos juízes, atrasos na justiça, com falhanço judiciário…

Há uma crise de confiança, sendo que não há eficácia social sem crença no poder.

E com a crise dos orçamentos e receitas fiscais, por excessos de despesismos públicos e aliás errados, sem efeitos multiplicadores, fraco desenvolvimento continuado e recessão económica, injustiça fiscal, corrupção, níveis de desemprego, o Estado também domina cada vez pior as novas funções sociais, impondo a procura de um novo Estado e de outra EU no plano da eficácia, legitimidade e solidariedades, num Estado não vergado aos grandes interesses que o corrompem e domesticam e com um novo modelo federal assente no respeito das soberanias europeias, iguais e em que os Estados mais desenvolvidos colaborem no fim das assimetrias e desequilíbrios económicos no todo Europeu.